sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Simples assim

Indiscreção de uma câmera cega

tem sido assim
Cathy Pinheiro

        o freio do avião
        ou melhor aquele fremir frenético do freio do avião
        acendendo a vontade
        de que tudo fosse diferente
        e ele estivesse lá
        a chegada em solo firme(?)
        o movimento hipnótico da esteira rolante
        cheia de malas e ansiedades empacotadas
        olhares se cruzando se procurando
        combustível da esperança
        de que ele esteja lá
        como sempre seria
        um sereno semblante
        cara séria
        cara sério !
        cachos de um assumido prata
        livres quase nos ombros
        sorriria quando nos visse
        se estivesse lá
        abraçaria os meninos e nos conduziria seguros para casa
      
        uma coisa louca essa vã esperança 
        que se repete a cada chegada
        de que tudo
        não tivesse sido senão um sonho delirante
        assim tem sido

Cathy querida,

Tem sido assim.....Me emociona pela realidade do sentimento sentido, pois assim como tem sido para você, tem sido  para mim também já há seis anos, que ora parecem muito distantes e, outras vezes, como se fosse ontem.

George partiu subitamente, sem nenhum aviso prévio.
Tinha 42 anos, uma vontade imensa de viver e muito tubilhão de sofrimento no espírito.
Era meu irmão, o "caçula",  meu amigo, "meu marido circunstancial", apoio e aconchego em qualquer momento para mim e para meus filhos.

Não entendo até hoje, e a mim só  sobram as sensações da presença esperada, os sustos quando a memória acusa a ausência compulsória.

Então percebo que só nos resta mesmo constatar que, realmente, tem sido assim, e assim será.
Bj carinhoso,
Luiza

Simples como uma rosa
Eustachio Lima

fecho agora a caixa
escarlate

de chocolate
e
bom bom

dobro a tela
de
cristal

penso sonhar
com
ela

vou dormir
contente


Rosa vermelha
simples, mas como a rosa, para
babí, luiza & ma cathy



sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O penúltimo ladrão de Galinha

Chico Lira

A Natal moderna herdou da colonial e provinciana cidade, além da malhação e queima de Judas, uma outra grande tradição na Semana Santa ("Aleluia! aleluia!/carne no prato/ farinha na cuia"), o roubo "litúrgico" de galinhas, nos sábados que antecedem o Domingo de Páscoa. Mesmo o mestre Cascudo teve dúvidas de onde tudo isso começou: da passagem e dos desdobramentos do rito português. Já o fim da tradição religiosa-cultural se deu com a eletrificação dos galinheiros, e o salve-se quem puder que se instalou no final dos anos 60.

Eu fui ladrão de galinhas e tive um grande comparsa: o destemido Tasso. Com o baixinho da Rua Ipanguassu enfrentei carrapichos, pregos de todos os tamanhos, cacos de vidro, cachorros brabos, tiros de espingarda de soca de sal e queimaduras de urtigas.

Os vexames que vivemos dentro de quintais e galinheiros alheios até seriam pitorescos, não tivéssemos corrido riscos quase fatais. Como no dia em que, escalando um muro, eu perdi o mocassim numa abocanhada de um pastor alemão furioso.

Nunca me esqueço de alguns contratempos, como no dia em que roubamos uma galinha de uma casa colada ao muro da quadra da AABB. Jogamos a bola de basquete do clube, e saímos com a fêmea do galo quietinha e embrulhada numa camiseta. Tudo perfeito, não fosse alguém nos dedurar. A família carioca não entendia, e não queria entender a nossa tradição. Depois de ameaçarem chamar a rádio-patrulha, nós nos entregamos. Não deu outra: levaram nosso jantar da festa, praticamennte pronto, de cima do fogão de dona Adelzuite. Até hoje não devolveram a panela da mãe de Duda.

Começamos precoces na brincadeira do roubo de galinhas. Eu não tinha 13 anos ainda e fui o primeiro a ser pego com a mão na massa, digo, nas penas. Era uma galinha de um branco imaculado, gorda, enorme, que minha vizinha, dona Tetéia Aranha, criava a pão-de-ló. Mas nem as cabadas de vassoura da braba senhora, nem a histórica surra de Pequenita me intimidaram.

No outro ano, estávamos a postos. Na hora do crime, eu e Tasso resolvíamos no par ou ímpar. Uma tarde, próximo ao Aero, depois de chuparmos um pé inteiro de siriguela, resolvemos que aquele era o momento do pulo. A empregada na cozinha cantava alto: "Pobre menina/ não tem ninguém/...". Pedi "par". Tasso "lona". Eu disse que não valia, e o empurrei no meio de várias galinhas de raça. Foi um cacarejado infernal, um voa voa pra todo lado. A primeira fortinha que passou na frente, Tasso abraçou e tentou, com ela presa ao peito, escalar o muro. Mas eu não conseguia trazê-lo de volta. Foi quando ele resolveu sair pelo portão da frente, e com passagem livre não teve problemas. Porém "a cantora" passou a gritar sem parar: "Dona Ângela, ligue pra polícia. Estão roubando suas galinhas".

Se nossos roubos não correspondiam às nossas festas, com esta não foi diferente. Deixamo-la amarrada pelo pé, num tronco de juazeiro, nas proximidades da ladeira da Telern, só o tempo de convencermos alguém para cozinhá-la. Nem meia hora e tudo estava resolvido. Quando voltamos para apanhá-la, nada. A galinha havia sumido. Quase trocamos uns tabefes, mas só na segunda-feira ficamos sabendo. Tinha sido o sorveteiro rival de Seu Louro, que passou anos com o mesmo bordão: "Ladrão que rouba ladrão...". Ninguém teve coragem para enfrentá-lo.

A galinha preta que furtamos do vigia da AABB e sumimos debaixo de tiros de soca, até parecia ter sido um sucesso. À noite, quando fomos saboreá-la no bar da Praça Augusto Leite, a mulher nos deu a triste notícia: "Não matei a galinha. Ela está com gôgo. Agora eu fiz rabada e está bem quentinha".

No domingo, eu li no O Poti, em chamada de primeira página: "Ladrão de galinhas morre eletrocutado". Aquilo selou minha despedida do cerimonial pagão de Páscoa. Já meu companheiro, nunca mais o vi.

In "Amigos do Tirol", Natal/RN, 2010
A venda na AABB